sábado, 29 de outubro de 2011

"Bendiga sua Caminhada."

- Olha, isso que você está tentando fazer é mais fácil do que parece na verdade, mas exige tempo, muito tempo... Tempo apenas para isso! – Disse o ancião ao garoto que esperava na porta.

- Sim, eu sei. Por isso estava pensando - -

- Esse é seu maior problema, se classifica como onisciente! Eu que já conversei com um cara que se classificava como sendo o próprio Deus, numa mesa de café num hospício; mesmo eu nunca pensei ver um rapaz tão pretensioso. – O ancião picava seu fumo de corda.

O rapaz sabia que o velho poderia estar sendo duro demais com ele, mas também sabia que tinha uma grande verdade brotando de sua boca enrugada; brotando tão palpável e desagradável quanto um tumor crescendo desgovernadamente. Decidira naquela mesma hora que não queria o vício do tabaco para si (e era uma promessa!), que parecia acalmar o velho, e ao mesmo tempo cobrir sua cabeça careca com preocupações em relação à sua morte que se aproximava, e à vida saudável que ele jogou fora, assim que resolveu morar afastado de tudo.

- É fácil, garoto... mas não necessita de nenhum grama de orgulho, e olhando para você, vejo que precisa deixar mais sobrepeso do que eu imaginava. Essa sua mochila nojenta, de soberba e medalhas feitas de tampinhas de garrafas... tudo isso pode ficar aqui mesmo, caso queira entrar no rio.

Nessa mesma hora, sentindo uma dor horrenda, como a dor de perder um filho, o garoto deu um berro que lhe fez saltar os olhos, e ressaltar veias que antes estavam mais fundas em sua pele, soltando com esse berro também a pesada mochila, que nem mesmo ele podia ver, que era talvez um modo do velho de ilustrar as coisas que se encontravam fora do alcance de seus olhos opacos. O rapaz gritou até se cansar, e tirando suas vestimentas, olhava para o velho, que balançava a cabeça sob o sol, parecendo achar tudo aquilo um tanto desnecessário, e apressado demais. Aquele era supostamente o grito que os andarilhos davam antes de encontrarem a graça; grito este necessário naquelas terras secas que abraçavam as margens do rio.

“Seria esta a hora do menino se desvencilhar de tudo o que já conheceu?”. Pensou o ancião. E já era tarde demais. O garoto dera o grito, e agora, nu e com um desesperado semblante adentrava o rio. Se afogaria sem alcançar a graça, e desgraçaria sua caminhada, que poderia ter entrado para a história daquele mundo seco.

Já há trinta anos o velho não conversava com ninguém, e pedia a Deus que lhe enviasse um bom aprendiz, para que nem tudo se acabasse em poeira (o ancião já tinha muita idade para poder adentrar o rio, afinal). Não seria aquele garoto o enviado? Sua coragem ao encarar seu possível fim poderia ser um sinal.

Quase sem conseguir pensar, devido ao ensurdecedor som da voz já rouca do menino, o velho correu à margem, e agarrou-o pela garganta, parando seu grito, em nada mudando o semblante assustado, apenas dizendo "bendiga sua caminhada, bendiga...".

- É cedo demais, garoto. Vejo o que tenta realizar, e eu lhe disse, é mais fácil do que parece. - Fazendo um sinal para que fosse seguido, o velho dirigiu-se à sua empoeirada mala de couro, e jogou um grande naco de fumo nas mãos do rapaz, que desnorteado, ficou olhando para aquele objeto estranho, que mais se assemelhava a fezes de cachorro. – Comece a picar. Tem canivete? Temos uma longa conversa para a noite que se aproxima.

Logo o rapaz enrolava um grande charuto para si, acendendo-o, quebrando a promessa feita, tossindo e cuspindo grandes bolas de catarro, que se alojavam no peito que chiava como um gato, devido ao tempo seco e empoeirado. Não sabia se alcançaria a graça. Apenas tinha em sua mente uma certa preocupação, não em relação à morte que espreitava, mas devido à configuração de seu próprio espectro, que parecia se fundir com o velho, com o rio, com a fumaça. O cansaço ia embora, dando lugar a um novo companheiro, de carne e ossos, de olhos opacos, que lhe ensinavam a ter calma, e a guardar um grito para um dia de menos desespero.

"Bizarro" - Feito para a 'Guerra de Ilustrações', Londrina.