segunda-feira, 21 de maio de 2012

Caleidoscopia


O Homem, sentado só, numa sala de espelhos, tempo o bastante para conhecer muita gente, declama um discurso, enquanto fala com seus superiores.

- Me perdoem, não tenho lhes tratado devidamente. Sempre que vocês vêm aqui eu lhes ofereço cigarros, e esquecemos a chaleira apitando, como se fôssemos surdos, ou tivéssemos transcendido a carne, e conversássemos como iluminados. Realmente, lhes puxo cadeiras, e conto-lhes uma história, sem nunca me preocupar em situar-lhes dignamente nesse mundo de que tanto falo. Pois deixem-me tentar...

O Homem apanha um papel no bolso, e respirando fundo, começa:

“Existe um ninho, depois da mente, depois da aura, um lugar físico, de Não-Imaginar, que me segura pelas mãos, e cura minhas feridas. Me agarro à senhorita de cabelos cavernosos, antes que ela se dissolva, e pare de me amamentar. Neste ninho, no topo de uma grande árvore, brigo por alimento; qualquer um sabe que não somos capazes de voar, não em um lugar tão sólido como este. Entendo bem sua postura: “Cabeça elevada, olhos ligeiramente desconfiados...”. E entendo porque. Acredito que seja porque tudo aquilo já existiu, e voltará a ser, de maneira totalmente inusitada, com um fresco soprar, de um deus que ainda não foi corrompido. Trazer aos olhos algo tão distante pode parecer perigo, para nós, que não temos tanta intimidade assim com os planos evolutivos, traçados tão extraordinariamente por ancestrais intergalácticos (...)”



O Homem, já sentindo-se nervoso com a situação, interrompe o discurso, e proclama sinceramente:

- Olha, não posso abrir mais a ferida, isso dói... Mas posso colocá-la contra o sol, e vemos o sangue coagulando através das chagas... transparentes chagas contra o sol. Já perceberam que nossa única vista para fora deste recinto é o teto solar? Tudo sob a luz é um tanto frágil, também porque a luz é um presente, um grande brinquedo, que atravessa a carne, que não necessita de olhos para existir. Gostaria de leva-los um dia à esse tal mundo, onde existem corais, e pessoas gigantescas. Já fui um gigante uma vez! Foi horrível, mal consegui me mexer. Descobri que nos foram dadas auras de acordo com nossos tamanhos; todas as auras têm a mesma magnitude, segundo o que me foi dito, mas são incompatíveis com corpos de outros tamanhos... Caso acabem dentro de um gigante, não tentem controla-lo, pode ser doloroso, mais do que estas feridas.

Todos se entreolham, querendo mais um pouco da mini-carnificina. O Homem, fingindo estar novamente disposto, sorri, e depois gargalha.

- Há hã há he há! Que tolo sou, não é mesmo? Já parou de jorrar sangue desta aqui...

Apontando para o rosto, onde ficava a mais horrível de todas suas chagas, ele começa novamente o discurso, destroçando todas aquelas ínfimas poças de sangue; sangue este que já estava em falta, ainda mais após ter perdido tantos amigos [para nós, espelhos, para ele, amigos]. Perder tanta gente em tão pouco tempo simplesmente fez com que ele abraçasse cada um deles quando partiam, e o que cada um desses amigos deixava para ele, eram mais e mais chagas... “Histórias para você contar quando deixar este mundo, para aquele, do Não-Imaginar..!”, diziam eles. O homem era um grande contador de histórias, e vivia por e para elas, mesmo que o teto solar estivesse escuro, e não visse nenhum daqueles que sempre estiveram alí, cada um em sua “divisória de vidro” [era assim que ele via os espelhos].

Ele continuou:

- O mundo do Não-Imaginar é bendito, até mesmo por aqueles que não o visitaram, pois lá tudo é de pronta existência, e não precisa ser rebuscado de maneira alguma, lá conversam através de luz. Venho de lá, assim como a semente de cada um de vocês... Pois vivem através de mim, e...

Ele se deu conta, estava errado, por todo aquele tempo. Nada teve fim, e os mundos que visitara apenas reverberavam, estando em cada um deles ao mesmo tempo. Não se tratava de amigos, ou criações, mas sim, de mundos [para nós, serão sempre espelhos].

- Não! Não pode ser real! – Disse O Homem.

- E o que é real? – Retrucou um dos espelhos, vestido de branco e azul claro. – Sente-se, pegue um cigarro; vou pôr a chaleira a apitar. Posso lhe contar uma história?

O Homem, agora, com olhos que só poderiam ser de uma criança, sentava-se olhando para aquele sisudo, porém, brilhante ser. E o espelho disse, olhando de soslaio para o garoto, que encontrava-se todo retalhado, no centro da sala de espelhos:

- Sei que quer voltar pra casa, mas antes temos de descarregar todo esse peso, um sobre o outro; um de cada vez. Assim, aprenderemos a amamentar, e ser amamentados, naquela grande árvore que nos espera.

A chaleira apitou, e ninguém pareceu ouvir.

sábado, 12 de maio de 2012

Tilt

Desenho que produzi para o evento Guerra de ilustrações em Londrina, tema: "Tilt".

Rafael Alvino.

Cultivo.


Cultivei, apesar de minha iminente falta de teto, algo para a noite... Mesmo que o sol veja, e que pássaros defequem sobre, lá está, brotando, e florescendo. Algo para a noite.

Por favor, amigo, não confunda esta carta com uma daquelas declarações de amor à Lua; tudo tem de se tratar de amor? Pode ser que sim. Neste caso um amor catatônico, longínquo, catastrófico, e mesmo assim, belo!

Preciso lhe abrir um pouco os olhos sobre esse tal relator, que pede pra ser lido, que se arranja entre pantufas e calções, e que fuma um charuto, de fato um cara sisudo... Bom, ele não existe. Tem um menino azulado ao meu lado, deve ser ele quem dita tudo isso.

Não precisa me encarar como garoto-problema, apenas porque dou vazão à muito de minha cólera. Falo de um sonho, e vivo parte dele agora; ser pródigo nessas horas é como matar o próprio animal de estimação para dar-lhe de comer um tanto de sua própria carne. Não rola.

Deve ter havido uma estranha separação de bens, feita há eras, quando a razão se distanciou do viver. Viver parece, na realidade, não utilizar da razão. Utilizamos de nossas faculdades mentais, mas não da razão, não aquela que está no dedo de Deus em toda a Renascença, nem naquela que torceu pescoços de antigos e contemporâneos pensadores, por terem-na presenciado longe da vida que corre nas veias, naquela vida que conhecemos, mas que frequentemente negamos, porque queremos viver.  

Pois cultivo, sob o céu noturno. Tenho pra mim que é de lá que sairá meu mais suculento fruto, azedo e gélido, nascido de noites de inverno.

Muitos poetas foram lidos, por parecerem falar sobre a verdade, uma que não é vista com os olhos; nesta ocasião presente, porém, me aqueço, sem me preocupar com o que há de tentar me parar, e digo que pode ser que esta carta seja lida por eu estar falando de uma vida que vemos todos os dias, que está diante de nossas faces agora, e que não precisa levar o nome de verdade, necessariamente.

O que sinto agora é uma imensa saudade da personificação do sonho:

- Posso tocar? Então é real... Feito de sonhos? Então não se trata especificamente da verdade.

Apesar de todos estes vícios de locutor fúnebre, minha Aurora, a que tenho para mim, é uma aurora noturna, uma que se deleita em silêncio, que brota em verdes musgos, que tem a calma como sendo voz de comando. Calma que ecoa na mente, quebrando suas amarras devido à insistência. Insistência dessa ânsia, de ter um dia a mais, de ter como meio de locomoção um balanço, que não necessariamente me leva à outro lugar, mas me dá verdadeira sensação de que apenas nos mudamos de lugar enquanto a terra transita pelo espaço; pois da minha casa até a sua, ou do norte ao nordeste... bem, isso não muito chão. É?  

Não aguardo essa Aurora, nem a pinto de outras nuances de laranja; ela vai sempre ser minha inspiração, meu rumo, minha Renascença, minha iniciativa pessoal, minhas costas viradas para o rockstar.  Vivo agora tal mudança, devido a este cultivo noturno, e apenas grito agora para me preparar para o silêncio. A paz pode ser assustadora, mas já perdi o medo dela.