quinta-feira, 4 de julho de 2013

"Linda"

- Meus amigos não dão muita bola pra mim...  – Disse um garoto que brincava de monstro, vestido de Krueger.

- Você mente. Mente agora. – Disse uma garota vestida de preto, apenas para contrastar com a pele branca.

- Todos sabem que falo algo diferente da Verdade o tempo inteiro, então não é mentira, é apenas como sou. Me aceitam assim, apenas não me têm como profeta, ou redator jornalístico.

- Devia parar com isso. Boa parte da humanidade espera apenas pela verdade. Se houvesse hoje um cataclisma, e saíssemos na nave que hoje chamamos de Praça Central, pode ser que não o aceitassem lá. Você bem sabe que depois que o dinheiro foi extinto, verdade substituiu moeda, e mentirosos são ladrões.

- Eu crio realidades alternativas. – Diz o garoto, cortando a garganta de uma garota com suas garras.

- Não, você mente. Essa garota não existe.

- E como sabe que era uma garota?

- Bom... Não sei dizer. A maneira como segurou-a pela cintura, a leveza dela desacordada em seus braços, e a maneira como seu braço contornava seu tronco, quando ela deu seu último suspiro... Só poderia ser uma garota.

- Ela tinha tranças, não tinha?

- Sim, como sabe?

- Acabei de matá-la; ela sempre brincava de pular elástico na rua debaixo da minha casa. Ela sempre usou tranças.

A garota de preto observa o pôr do Sol por dentre as árvores. O laranja do céu parece pintar seus dentes de ouro. Sorri para o céu, não para o garoto. Ela não entende, nunca entendeu o garoto, tenta por partes, sempre:

- E por que a matou?

- Precisei fazê-lo. Eu a amava, e não pude ser amigo dela, tentei, pensei que ela fosse minha amiga, mas não deu certo. Ela não tinha amigos, por isso a matei.

- Muitas pessoas são felizes solitárias, sabe disso.

- Mas, não ela. Pulava elástico ao prantos, sozinha, calada. Fazia greve de fome, e ninguém a notava, a não ser por mim.

- Ninguém pula elástico sozinho, é impossível.

- Sabe que é possível. Ela pulava.

- Sim, eu sei. Ela colocava as meias-finas nos pés de cadeiras com pés de metal e assentos de madeira falsa.

- E, como sabe disso?

- O que é impossível, é pular elástico entre amigas, e estar aos prantos.

- Vê? Tive de matá-la, foi melhor assim.

- Você só a matou por que ela não quis ser sua amiga.

- Na verdade não foi por isso, mas você acaba de entender o que lhe disse por primeiro: “Meus amigos não dão muita bola pra mim”.

- Tem um lindo pôr do sol à sua frente, e você aí, olhando pro cadáver de uma menina que mal havia começada a entender o mundo à sua volta... Comece a viver um pouco pra variar, não se arrependerá. Faça essa garota desaparecer, e vamos tomar nosso cappuccino ao ar livre sem que essa carnificina nos incomode.

- Você está pedindo para que eu crie uma realidade alternativa? Linda existe, e seu corpo está estirado no chão, seu sangue ainda quente está sendo absorvido pelo gramado. Um mundo sem linda, seria um mundo completamente diferente desse em que vivemos! Consegue ignora-la? Consegue agora ver o sol se pôr sem ver a pobre silhueta dessa garota aos seus pés? Seus olhos tristes e apagados, suas tranças embebidas de sangue?

- Não! Não tem como! É o pôr do Sol mais triste que já vi, graças à essa vida que você acabou de anular! Faça isso voltar a ser um piquenique, entes que a noite chegue!

- Está bem... A garota não está morta. É uma atriz que contratei para lhe provar que não minto... que crio realidades alternativas. Pode levantar-se, Linda. Está feito!

- Como isso é possível?! A vi morrer, vi sua jugular esguichando sangue, e - -

- A realidade alternativa é mais flexível do que essa aqui, do pôr do sol.

- Então faça-a sumir! Ela está me assustando com esse sorrisinho, toda coberta de sangue... O cheiro é de sangue de verdade.

- Não posso fazê-la sumir. Tudo no universo caminha para o caos... é impossível ‘desmexer’ leite com achocolatado... Entende o que digo?

- Acho que entendo. Pergunte se ela quer cappuccino... O vento está frio.

- Ela não bebe em serviço.

- Você é completamente louco... Espero que se houver um cataclisma, você consiga subir na nave... Mentindo assim, não dá.

- Eu não estou mentindo... Você está acariciando os cabelos de quem? Tem alguém com a cabeça no seu colo?

- É Linda, ela... – A garota de preto leva a mão à boca, assustada. Não havia notado o que fazia.
O garoto ri de maneira sombria... Com aquela pele toda queimada e dilacerada de Krueger:

- Precisarão de mim na nave, garota! Se aterrissarmos num planeta onde não há nada, apenas solo, precisarão de mim para criar todo o resto. Ficção é a verdadeira profecia da humanidade! É só olhar para todos aqueles doutores em mecânica quântica falando em teletransporte.

- Então admite que o que faz é ficção!

- ‘Ficção’ é o nome que todos os outros dão. É como chamar pedacinhos de pão e suco de uva de ‘Corpo de Cristo’.

- Só espero que não haja um cataclisma...

- Eu também. A Terra hoje é um bom lugar sem todo aquele dinheiro!

- Só lhe peço uma coisa... Tire essa fantasia de monstro, não é legal. Não quero ver mais sangue. Da maneira como me olha, parece que quer cortar a minha garganta!

- Não há como me transmutar agora... Sabe por que me visto assim? É porque isso tudo não passa de um sonho. Criei este sonho para você!

- Isso é mentira!

- Não, você sabe o que é isso...  O que são os sonhos, senão realidade alternativas?

- Aaaah!


A garota acorda, tem as tranças bagunçadas.  Olha pela janela, e não vê nada além de árvores, um pôr-do-sol daltônico, e duas cadeira justapostas, com meias-finas em volta.