- Meus amigos não dão muita bola pra mim... – Disse um garoto que brincava de monstro,
vestido de Krueger.
- Você mente. Mente agora. – Disse uma garota vestida de
preto, apenas para contrastar com a pele branca.
- Todos sabem que falo algo diferente da Verdade o tempo inteiro, então não é
mentira, é apenas como sou. Me aceitam assim, apenas não me têm como profeta,
ou redator jornalístico.
- Devia parar com isso. Boa parte da humanidade espera
apenas pela verdade. Se houvesse hoje um cataclisma, e saíssemos na nave que
hoje chamamos de Praça Central, pode ser que não o aceitassem lá. Você bem sabe
que depois que o dinheiro foi extinto, verdade substituiu moeda, e mentirosos
são ladrões.
- Eu crio realidades alternativas. – Diz o garoto, cortando
a garganta de uma garota com suas garras.
- Não, você mente. Essa garota não existe.
- E como sabe que era uma garota?
- Bom... Não sei dizer. A maneira como segurou-a pela
cintura, a leveza dela desacordada em seus braços, e a maneira como seu braço
contornava seu tronco, quando ela deu seu último suspiro... Só poderia ser uma
garota.
- Ela tinha tranças, não tinha?
- Sim, como sabe?
- Acabei de matá-la; ela sempre brincava de pular elástico
na rua debaixo da minha casa. Ela sempre usou tranças.
A garota de preto observa o pôr do Sol por dentre as
árvores. O laranja do céu parece pintar seus dentes de ouro. Sorri para o céu,
não para o garoto. Ela não entende, nunca entendeu o garoto, tenta por partes,
sempre:
- E por que a matou?
- Precisei fazê-lo. Eu a amava, e não pude ser amigo dela,
tentei, pensei que ela fosse minha amiga, mas não deu certo. Ela não tinha
amigos, por isso a matei.
- Muitas pessoas são felizes solitárias, sabe disso.
- Mas, não ela. Pulava elástico ao prantos, sozinha, calada.
Fazia greve de fome, e ninguém a notava, a não ser por mim.
- Ninguém pula elástico sozinho, é impossível.
- Sabe que é possível. Ela pulava.
- Sim, eu sei. Ela colocava as meias-finas nos pés de
cadeiras com pés de metal e assentos de madeira falsa.
- E, como sabe disso?
- O que é impossível, é pular elástico entre amigas, e estar
aos prantos.
- Vê? Tive de matá-la, foi melhor assim.
- Você só a matou por que ela não quis ser sua amiga.
- Na verdade não foi por isso, mas você acaba de entender o
que lhe disse por primeiro: “Meus amigos não dão muita bola pra mim”.
- Tem um lindo pôr do sol à sua frente, e você aí, olhando
pro cadáver de uma menina que mal havia começada a entender o mundo à sua volta... Comece a viver um pouco pra variar, não se
arrependerá. Faça essa garota desaparecer, e vamos tomar nosso cappuccino ao ar
livre sem que essa carnificina nos incomode.
- Você está pedindo para que eu crie uma realidade
alternativa? Linda existe, e seu corpo está estirado no chão, seu sangue ainda
quente está sendo absorvido pelo gramado. Um mundo sem linda, seria um mundo
completamente diferente desse em que vivemos! Consegue ignora-la? Consegue agora
ver o sol se pôr sem ver a pobre silhueta dessa garota aos seus pés? Seus olhos
tristes e apagados, suas tranças embebidas de sangue?
- Não! Não tem como! É o pôr do Sol mais triste que já vi,
graças à essa vida que você acabou de anular! Faça isso voltar a ser um piquenique,
entes que a noite chegue!
- Está bem... A garota não está morta. É uma atriz que
contratei para lhe provar que não minto... que crio realidades alternativas.
Pode levantar-se, Linda. Está feito!
- Como isso é possível?! A vi morrer, vi sua jugular
esguichando sangue, e - -
- A realidade alternativa é mais flexível do que essa aqui,
do pôr do sol.
- Então faça-a sumir! Ela está me assustando com esse sorrisinho,
toda coberta de sangue... O cheiro é de sangue de verdade.
- Não posso fazê-la sumir. Tudo no universo caminha para o
caos... é impossível ‘desmexer’ leite com achocolatado... Entende o que digo?
- Acho que entendo. Pergunte se ela quer cappuccino... O
vento está frio.
- Ela não bebe em serviço.
- Você é completamente louco... Espero que se houver um
cataclisma, você consiga subir na nave... Mentindo assim, não dá.
- Eu não estou mentindo... Você está acariciando os cabelos
de quem? Tem alguém com a cabeça no seu colo?
- É Linda, ela... – A garota de preto leva a mão à boca, assustada.
Não havia notado o que fazia.
O garoto ri de maneira sombria... Com aquela pele toda queimada
e dilacerada de Krueger:
- Precisarão de mim na nave, garota! Se aterrissarmos num
planeta onde não há nada, apenas solo, precisarão de mim para criar todo o
resto. Ficção é a verdadeira profecia da humanidade! É só olhar para todos
aqueles doutores em mecânica quântica falando em teletransporte.
- Então admite que o que faz é ficção!
- ‘Ficção’ é o nome que todos os outros dão. É como chamar
pedacinhos de pão e suco de uva de ‘Corpo de Cristo’.
- Só espero que não haja um cataclisma...
- Eu também. A Terra hoje é um bom lugar sem todo aquele
dinheiro!
- Só lhe peço uma coisa... Tire essa fantasia de monstro,
não é legal. Não quero ver mais sangue. Da maneira como me olha, parece que
quer cortar a minha garganta!
- Não há como me transmutar agora... Sabe por que me visto
assim? É porque isso tudo não passa de um sonho. Criei este sonho para você!
- Isso é mentira!
- Não, você sabe o que é isso... O que são os sonhos, senão realidade
alternativas?
- Aaaah!
A garota acorda, tem as tranças bagunçadas. Olha pela janela, e não vê nada além de
árvores, um pôr-do-sol daltônico, e duas cadeira justapostas, com meias-finas
em volta.